domingo, 9 de outubro de 2011

Dos fósseis aos renováveis: a difícil transição energética

Já são tão comuns os discursos que defendem a passagem IMEDIATA para as chamadas fontes renováveis de energia que nem paramos para pensar se isso de fato é possível. E muitas vezes a energia nuclear é pintada como a grande inimiga dessas fontes renováveis. Pura bobagem!

O Dr. Ronaldo Goulart Bicalho, Pesquisador do Grupo de Economia da Energia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, esclarece as dificuldades tecnológicas, econômicas e político-institucionais de se aumentar a participação das fontes renováveis na matriz energética.


Dos fósseis aos renováveis: a difícil transição energética

Por Ronaldo Bicalho (Fonte: Blog Infopetro)


A construção de uma política energética, que administre a difícil passagem de uma economia baseada nos combustíveis fósseis para uma economia de baixo carbono, não é uma tarefa fácil.

A massiva substituição dos combustíveis fósseis pelas fontes de energia renováveis envolve mudanças tecnológicas, econômicas e institucionais significativas. Essas mudanças transcendem o setor energético e abarcam temas que dizem respeito a um conjunto de valores associados ao papel crucial da energia no desenvolvimento econômico e no bem estar social e à relação com os recursos naturais e o meio ambiente derivada, justamente, dessa crucialidade.

A compatibilização entre os imperativos da segurança energética e os da mudança climática, mediante o recurso à penalização dos combustíveis fósseis e ao incentivo às renováveis, tem-se demonstrado na prática muito mais complexa do que o imaginado inicialmente.

A idéia de reunir o melhor dos dois mundos – a autossuficiência e a baixa emissão, o aumento da segurança energética e o combate aos fatores geradores da mudança climática – em torno da ampliação das fontes renováveis na matriz energética vem encontrando dificuldades tecnológicas, econômicas e político-institucionais crescentes.

A primeira dificuldade é tecnológica e diz respeito à necessidade de que haja avanços significativos nas tecnologias renováveis para que elas possam competir de fato com as tecnologias tradicionais. Esses avanços referem-se à superação dos problemas associados às baixas estocabilidade, densidade e escala, características do atual estágio de desenvolvimento das renováveis.

O problema principal aqui é que é baixa a probabilidade de que estejamos no limiar de rupturas tecnológicas radicais nessa área, que impliquem em um desenvolvimento em escala massiva de fontes de energia limpas e baratas.

Na verdade, o desenvolvimento de novas tecnologias energéticas limpas tem-se demonstrado muito difícil e caro, o que faz com que muitos especialistas considerem que sem o apoio continuado dos subsídios e incentivos governamentais, essas tecnologias terão um impacto muito pequeno no mix energético.

Dessa maneira, deve ser encarada com certo cuidado a concepção de que o avanço tecnológico esteja às portas de tornar as renováveis competitivas na geração de eletricidade, ou de produzir uma bateria que faça com que o veículo elétrico seja capaz de competir de igual para igual com o carro a gasolina tanto em termos de preço quanto de autonomia.

Não se deve esquecer que a grande vantagem das fontes fósseis é a sua flexibilidade; ou seja, a sua capacidade de fornecer a quantidade de energia desejada, no momento desejado e no local desejado. Essa “liquidez” energética, que garante a elevada certeza do acesso imediato a um “poder energético”, quer seja em termos de calor ou de trabalho, sem “restrição” temporal ou espacial, advém, justamente, da estocabilidade e densidade elevadas, intrínsecas a essas fontes.

O grande desafio das fontes renováveis é exatamente a construção dessa flexibilidade, dessa liquidez, de tal forma a permitir a substituição em grande escala dos combustíveis fósseis sem a alteração do padrão de consumo de energia tradicional.

Na medida em que essa substituição hoje não se sustenta tecnologicamente, via uma radical redução dos seus custos, a expansão das renováveis passa a depender de mecanismos que as tornem competitivas frente às fontes fósseis.

Esses mecanismos acabam passando, de uma forma ou de outra, pela penalização do uso dos combustíveis fósseis e pelos incentivos ao uso das fontes renováveis.

Dessa forma, o estabelecimento de um preço/custo para as emissões de CO2, na forma de uma taxação ou de um sistema tipo cap-and-trade, surge como uma forma de penalizar o uso dos fósseis.

Essa é uma maneira de elevar o custo da energia derivada dos combustíveis fósseis, de tal forma que as tecnologias mais limpas possam enfrentá-la no mercado em melhores condições do que as atuais.

Por outro lado, pode-se tentar despejar pesados incentivos à expansão dos renováveis mediante o recurso a mecanismos fiscais e financeiros que por outras vias acabam construindo a competitividade que se deseja para essas fontes.

Contudo, tanto em um caso quanto no outro, trata-se de uma competitividade construída institucionalmente pelo Estado. O que coloca a política energética no centro da dinâmica de evolução do setor energético no início deste milênio.

Essa evolução passa a depender das escolhas sobre quais serão as fontes, os setores, os agentes econômicos e os atores políticos que serão penalizados e quais serão aqueles que serão incentivados por essas mesmas escolhas.

Note-se que a questão fundamental não é a substituição das fontes fósseis pelas renováveis, mas a transição entre elas, tanto no que concerne à sua duração quanto ao seu conteúdo.

A duração e o conteúdo da transição são essenciais porque eles definem a quantidade de recursos que será desembolsada pelo consumidor e/ou pelo contribuinte durante esse processo.

É evidente que quanto maior for essa quantidade, maiores serão os impactos tanto sobre a competitividade e o acesso à energia quanto sobre as contas dos governos.

Nesse caso, a busca de uma fonte de energia, que possa desempenhar o papel de ponte entre a situação atual e o futuro desejado, surge como uma maneira de administrar os custos da transição.

A escolha alemã pela energia nuclear, antes de Fukushima, e a aparente inclinação atual dos americanos pelo gás natural não convencional vão nessa direção da busca pela fonte de transição. Que pode ser uma fonte de emissão zero, como é o caso do nuclear, ou uma fonte com uma taxa de emissão mais baixa do que aquelas apresentadas pelo carvão e pelos derivados de petróleo, como é o caso do gás natural.

O recente recuo alemão, com o descarte do nuclear, pode apontar na direção da transição direta, com a radicalização do processo de mudança, que se, por um lado, reduz a duração desse processo, por outro, aumenta os seus custos e a sua incerteza. Esse aumento tem colocado dúvidas sobre as reais intenções e sustentabilidade econômica e política da proposta alemã. Principalmente, quando se contempla a crise européia.

Nesse sentido, o atual quadro de crise econômica e fiscal dos países desenvolvidos deve se tornar o maior obstáculo a implementação de uma agressiva política energética de ampliação massiva das fontes renováveis na matriz energética; principalmente, devido aos elevados custos associados a essa implementação.

No entanto, não existe uma forma única de se encarar esse quadro. Se um observador mirar a posição européia a partir de Bruxelas poderá chegar a conclusão de que os europeus estão dispostos a pagar todos os custos, quaisquer que eles sejam, relacionados ao cambio para uma economia de baixo carbono. De outra feita, se esse mesmo observador olhar para a posição da maioria republicana na Câmara dos Deputados chegará a conclusão de que os americanos não estão dispostos a pagar nenhum dos custos desse câmbio.

É evidente que tanto Bruxelas quanto os republicanos não podem ser considerados como sínteses das posições européias e americanas. Até porque é muito difícil falar em termos de posições sínteses que representem algum tipo de convergência atual em torno desses temas. Contudo, essas posições sintetizam as fortes dificuldades encontradas quando se busca construir uma convergência entre as políticas energéticas e ambientais no âmbito mundial. Convergência esta imprescindível para enfrentar a natureza global dos problemas relacionados à mudança climática.

Dessa maneira, considerar que no contexto atual não existem restrições tecnológicas e econômicas à passada dos fósseis para os renováveis, bastando simplesmente a vontade política de fazê-la, é a maneira mais certeira de inviabilizar qualquer política que pretenda justamente fazer essa passada de forma consistente econômica, tecnológica e institucionalmente.

Deve-se ter claro que as restrições tecnológicas e econômicas tornam a ampliação significativa da participação das fontes renováveis na matriz energética um objetivo que só pode ser alcançado hoje mediante a forte intervenção do Estado, utilizando-se de mecanismos de penalizações e incentivos que rebatem fortemente em custos e subsídios, que geram constrangimentos à competitividade e ao equilíbrio fiscal.

Abstrair essas restrições e esses constrangimentos é falsear o debate e se afastar de uma solução que seja, de fato, politicamente sustentável.

Não é apenas a ignorância dos efeitos da mudança climática que torna difícil a transição para uma economia de baixo carbono, a ignorância dos custos reais dessa transição também torna difícil a definição de uma política consistente que administre esse processo difícil e extremamente complexo em termos tecnológico, econômico e político.


Para saber mais:

Segurança energética e mudança climática: diferentes visões, diferentes políticas
Segurança energética e mudança climática: a difícil convergência
O acidente nuclear no Japão, a escassez energética e a mudança climática global


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