sábado, 17 de setembro de 2011

Queimar carvão para enriquecer e reprocessar Urânio: que papo é esse?

No dia 01 de Setembro, publiquei um post sobre o texto do Dr. Alfredo Bosi na Folha de São Paulo. Hoje, irei falar um pouco sobre um ponto desse texto que não foi explorado no primeiro post:

"O enriquecimento do urânio depende de eletricidade gerada por combustí­veis fósseis, como o carvão. Duas das minas de carvão mais poluentes dos Estados Unidos, em Ohio e em Indiana, produzem eletricidade para enriquecer urânio". Dr. Alfredo Bosi em Tendências e Debates, Folha de São Paulo, 21 de Agosto de 2011.

O texto do qual o Dr. Alfredo Bosi obteve essas informações foi publicado na seção "Think again" da revista norte-americana "Foreign Policy", em 31 de Outubro de 2005 (acesso ao texto completo aqui, mas é necessário se cadastrar). O trecho original do ambientalista Benjamin Sovacool é o seguinte:

Nuclear Power Is a Clean Form of Energy

Unfortunately, no. When President George W. Bush signed the energy bill in August, he remarked, only nuclear power plants can generate massive amounts of electricity without emitting an ounce of air pollution or greenhouse gases. This claim is flat-out wrong. The reprocessing and enrichment of uranium often relies on fossil fuel-generated electricity. Data from the Institute for Energy and Environmental Research and USEC, a uranium enrichment company, indicate that enriching the amount of uranium needed to fuel 1,000-megawatt reactor for a year using the most efficient method can require 5,500 megawatt hours of gas- and coal-fired electricity (a 10-megawatt power plant running for 550 hours). Two of Americas most polluting coal plants in Ohio and Indiana produce electricity primarily for uranium enrichment. In this way, many nuclear power plants contribute indirectly but substantially to global warming, and fail to reduce U.S. dependence on petroleum and coal.

Traduzindo:

Energia nuclear é uma forma limpa de energia

Infelizmente, não. Quando o presidente George W. Bush assinou a conta de energia em Agosto, ele observou que somente as usinas nucleares podem gerar grandes quantidades de eletricidade sem emitir uma onça (ou cerca de 29 gramas) de poluição do ar ou gases do efeito estufa. Esta afirmação á totalmente errada. O reprocessamento e enriquecimento de urânio muitas vezes depende de eletricidade gerada por combustí­veis fósseis. Dados do Instituto de Energia e Pesquisa Ambiental e da USEC, uma empresa de enriquecimento de urânio, indicam que a quantidade de urânio enriquecido necessário para abastecer um reator de 1.000 megawatts por um ano, usando o método mais eficiente de enriquecimento, pode exigir 5.500 megawatt-horas de eletricidade gerada por gás e carvão (uma usina de 10 megawatts em execução por 550 horas). Duas das mais poluentes usinas à carvão em Ohio e Indiana produzem eletricidade principalmente para o enriquecimento de urânio. Desta forma, muitas usinas nucleares contribuem indiretamente, mas substancialmente, para o aquecimento global, e não para reduzir a dependência dos EUA do petróleo e carvão.


Bem, após pesquisar o assunto, conclui que é QUASE tudo verdade! O problema está na conclusão do ambientalista Benjamin Sovacool.

De fato, dizer que a geração de eletricidade a partir da energia nuclear não emite nem uma titica de gases que contribuem para o aumento do efeito estufa é mentira. Isso porque, embora durante a operação da usina não haja emissões significativas, devemos considerar toda a cadeia de produção, desde a construção da usina até o seu desaparelhamento ("decommissioning"), passando, inclusive, pelo processo de produção do combustível. É por isso que nos gráficos que comparam as diferentes fontes de energia (como o da figura abaixo) a emissão de gases do efeito estufa associada à energia nuclear não é zero.

Comparação da emissão de CO2 no ciclo de produção de eletricidade para diferentes fontes de energia. Compilação de 20 estudos sobre o assunto feitos por diversos países e órgãos (universidades, governos e indústrias). FONTE: World Nuclear Association.

A Agência Internacional de Energia Atômica (IAEA) estima que as etapas da produção que mais contribuem para a emissão desses gases nos reatores do tipo PWR (como os de Angra dos Reis) são a extração do minério de urânio, a conversão (do yellowcake em hexafluoreto de urânio), o enriquecimento, o reprocessamento do combustível usado e a construção/desaparelhamento da usina. O reprocessamento, ainda segundo a Agência, pode ser responsável por até 15% da emissão total desses gases na geração nucleo-elétrica.

Assim, dizer que usinas nucleares contribuem INDIRETAMENTE para o aquecimento global é verdade. Mas, dizer que elas contribuem SUBSTANCIALMENTE para isso é forçar a barra.

O fato é que é necessário energia elétrica para realizar o enriquecimento e o reprocessamento do combustível nuclear. Entretanto, a emissão de gases que contribuem para o aumento do efeito estufa associada a essas etapas de produção depende da forma como é gerada essa eletricidade. No caso dos Estados Unidos, a energia elétrica vem majoritariamente da queima do carvão (veja figuras abaixo). Para os Estados citados no texto por exemplo, 87% da energia elétrica de Ohio é gerada a partir do carvão, enquanto que no Estado de Indiana esse número sobe para 94%.

Contribuição de diferentes fontes de energia para a produção de eletricidade nos Estados Unidos. FONTE: Adapatada da U.S. Energy Information Administration.

Produção de eletricidade a partir da queima do carvão por estado norte-americano. Em destaque, os estados  de Ohio e Indiana. FONTE: Infográfico interativo no site da NPR.

No caso do Brasil, por outro lado, nossa energia elétrica vem principalmente das hidrelétricas (veja tabela abaixo). Logo, uma central de enriquecimento aqui produziria, indiretamente, menos gases do efeito estufa do que essa mesma central nos Estados Unidos. E quanto menor a participação do carvão, do petróleo e do gás natural na produção de energia elétrica, menor a emissão de gases do efeito estufa associada ao enriquecimento e reprocessamento do combustível nuclear.

Fonte de eletricidade no Sistema Interligado Nacional. FONTE:Plano Decenal de Expansão de Energia - Empresa de Pesquisa Energética.

Para ter uma idéia melhor do que os números citados no texto significam em termos de energia, que tal fazermos uma continha? Para isso, precisamos responder duas perguntas: quanta energia é gasta para enriquecer o urânio e quanto energia é produzida depois por esse urânio que foi enriquecido?

Quanto à primeira pergunta, conforme o texto mesmo exemplifica, são necessários 5.500 MWh de energia para enriquecer a quantidade de urânio que abastecerá um reator de 1.000 MWe de potência por um ano.

Quanto à segunda pergunta, lembrando que ENERGIA corresponde à multiplicação da POTÊNCIA pelo TEMPO de operação e supondo que a usina nuclear funcione com 85% de sua capacidade operacional (hipótese razoável para a usina Angra 2), em um ano um reator de 1.000 MWe de potência irá gerar (1.000 MW)x(365 dias)x(24 horas/dia)x(fator de capacidade de 0,85) = 7.446.000 MWh de energia.

Note que a energia gasta no enriquecimento (5.500 MWh) dividida pela energia gerada com o combustível enriquecido (7.446.000 MWh) é menor que 0,08%. Logo, gastou-se pouquíssima energia no processo de enriquecimento comparado à enorme quantidade de energia produzida pelo reator que, especificamente no caso norte-americano, evitou que mais combustíveis fósseis fossem queimados!


Para saber mais

IAEA - Greenhouse gas emissions of eletricity generation chains: Assessing the Difference

U.S. Energy Information Administration - Annual Energy Review

Infográfico - Visualizing The U.S. Electric Grid

World Nuclear Association - Comparison of lifecycle greenhouse emissions report

Empresa de Pesquisa Energética  - Plano Decenal de Expansão de Energia

Comparação da emissão de gases de efeito estufa (GEE) na geração nuclear de eletricidade no Brasil com as de outras fontes



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2 comentários:

  1. Pamela:
    Li todo o texto do ambientalista Benjamin Sovacool, na "Foreign Policy", através do link que você passou. Dá pra perceber facilmente pelos títulos, quase em forma de perguntas, e pelas correspondentes respostas do autor, de que lado ele está. Senão vejamos:

    Nuclear Power Is Dead.
    False.

    Nuclear Power Will Decrease Dependence on Oil.
    Not really.

    Nuclear Power Is a Clean Form of Energy.
    Unfortunately, no.

    Nuclear Power Is Inexpensive.
    False.

    Nuclear Power Plants Are a Security Threat.
    Yes.

    Nuclear Power Is a Wise Choice for Future Energy Needs.
    No.

    Até aí tudo bem. Entendo que cada um deve ter -e defender publicamente- a opinião que considera mais adequada, a partir do que estudou e analisou sobre a questão nuclear.
    No entanto, acho que qualquer um, ao se deixar levar por certa convicção interior do que considera melhor e absolutamente mais adequado como modelo a ser seguido em termos de obtenção de energia elétrica, decidindo assim fazer militância contra o que deduz ser um caminho equivocado, acaba por forçar um pouco a barra, contando com a confusão que, infelizmente, muitas pessoas fazem, entre os conceitos de KW (Potência) e KWh (Energia). Isto quando na mídia não vemos muitos artigos usando erroneamente KW/h. O Fisico Leandro Tessler, no blog dele, achou algumas:

    http://ccientifica.blogspot.com/2011/01/epoca-do-kwh.html

    http://ccientifica.blogspot.com/2011/08/mais-kwh.html

    Achei que você foi brilhante,na continha que fez no final, e pela colocação de bons gráficos comparativos.

    Notei no rodapé do artigo da Foreign Policy, uma correção do texto original de Sovacool, que é feito justamente no ponto em que ele informa sobre os dados a respeito da produção de Urânio enriquecido e a queima de carvão necessária para tanto. Vejamos (minha tradução não é lá estas coisas):

    "[...]a USEC, uma empresa de enriquecimento de urânio, indicam que a quantidade de urânio enriquecido necessário para abastecer um reator de 1.000 megawatts por um ano usando o método mais eficiente pode exigir 5.500 megawatts-hora de eletricidade, gás e carvão (uma potência de 10 megawatts durante 550 horas).* "

    Agora a minha tradução da correção, colocada no rodapé do artigo:

    "* Correção: Esta frase foi retificada. Tinha sido dito originalmente no texto que o urânio enriquecido necessário para produzir 1.000 megawatts de eletricidade pode exigir 5.500 megawatts-hora de eletricidade a carvão e a gás."

    Também dando uma de detetive, repare que Sovacool, talvez pela pressa, ou traição do seu subconsciente, devido provavelmente ao seu comprometimento com a militância em convencer o máximo possível de pessoas contra as usinas nucleares, se "esqueceu" de dizer que eram 1.000 MW POR ANO.

    Bom. Foi por isso que perguntei a você sobre esta questão que o Dr. Alfredo Bosi colocou no artigo da Folha de São Paulo. Agora vejo mais claramente ainda que ele também tentou de certa forma, induzir os leitores através de um exemplo que não corresponde à média do que acontece no mundo. Devido a isto é que classifiquei o artigo de tendencioso também. Tudo bem, afinal, ele foi publicado em “Tendências e Debates”. Só que neste caso, não vejo como as “tendências” do Sr. Bosi, colocadas desta forma, possam contribuir para um bom debate. Fico sem ter exatamente a ideia do que a Folha pretende com esta coluna. Enfim, só a Folha, mesmo. Mais confundindo do que esclarecendo.

    Acho que devemos insistir para que as pessoas deixem os apelos emotivos de lado, com argumentos capciosos, porque acho que está provado que eles não contribuem para a elevação do nível do debate.

    PS - Eu sabia que você não tinha se esquecido da minha pergunta. Obrigado, e mais um ponto pra você, Pâmela.

    Abraço

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  2. Oba, ganhei um ponto! Que bom! Deu trabalho achar esses gráficos, mas foi divertido!

    Bem legal o blog do Leandro Tessler. Valeu pela dica!

    Fico contente que você tenha sacado o texto do Benjamin Sovacool.

    Esse tipo de discurso que tenta usar "dados científicos" fora de contexto, errados e de fontes suspeitas ou difíceis de rastrear é tão frequente na mídia em geral que as pessoas tendem a aceitá-lo naturalmente e a repeti-lo como papagaios. Afinal, é baseado em "dados científicos" - credibilidade garantida!!!

    Abraços

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