segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Entrevista: Enriquecendo com laser, a técnica para o futuro

Se você achou que esse post era sobre como ficar rico, se enganou. Enriquecimento, nesse caso, não se refere a dinheiro, mas, sim, ao urânio, o combustível de boa parte dos reatores nucleares do mundo.

O urânio é dito enriquecido quando, em relação ao encontrado na natureza, ele tem uma concentração maior do "tipo" de urânio (isótopo) que tem grandes chances de sofrer a fissão nuclear: ele é “mais rico” em urânio 235 (U235).

Atualmente, apenas duas técnicas de enriquecimento do urânio são usadas em escala industrial: a difusão gasosa e a ultracentrifugação. A difusão gasosa consiste em comprimir o gás hexafluoreto de urânio (UF6) através de membranas microporosas associadas em série, de forma a se separar o U238 do U235.

Entretanto, na última década, a difusão tornou-se obsoleta e vem sendo substituída pela ultracentrifugação, em que os isótopos de urânio são separados usando a força centrífuga que age nas partículas do gás UF6. Como o U238 é ligeiramente mais pesado (cerca de 1%) que o U235, ao circular em alta velocidade pela centrífuga, essa força faz com que os materiais fujam para as extremidades, concentrando o U238 em uma região mais externa da centrífuga que o U235.

Uma terceira forma de enriquecimento ganhou destaque na mídia recentemente: desde 2009, o consórcio entre GE, Hitachi e Cameco está pedindo licença para a construção de uma planta de enriquecimento a laser nos Estados Unidos. Essa técnica  já é pesquisada há mais de 30 anos, inclusive no Brasil, no Instituto de Estudos Avançados (IEAv) do Centro Tecnológico da Aeronáutica. 


Em entrevista exclusiva ao blog Nuclear: Conhecer para Debater, o Dr. Nicolau Rodrigues, especialista nesse assunto e gerente do projeto desenvolvido no IEAv-CTA, fala sobre o enriquecimento de urânio usando lasers e seus desafios.


Como funciona a técnica de enriquecimento de urânio via laser?

Nicolau:
Na realidade existem três técnicas básicas de enriquecimento de urânio por laser: AVLIS, MLIS e CRISLA. As três são baseadas no fato de que isótopos diferentes, ou moléculas contendo isótopos diferentes, absorvem luz de maneira ligeiramente diferente. Esse fenômeno é conhecido como desvio isotópico (isotopic shift). É possível configurar um laser de modo que ao iluminar um gás contendo os dois isótopos de urânio, somente um deles irá absorver a luz deste laser e, de maneira seletiva, somente este isótopo será excitado.

O método AVLIS (Atomic Vapor Laser Isotope Separation) tem as seguintes etapas: a-) em uma câmara de vácuo, urânio metálico é aquecido até ser evaporado e formar um jato de vapor atômico (jato de átomos isolados); b-) um laser de corante convenientemente sintonizado ilumina este vapor de forma a ser absorvido somente pelos isótopos 235U; c-) um segundo laser de corante é sintonizado de modo a ser absorvido somente pelo isótopo previamente excitado e este processo é repetido até que os isótopos de 235U sejam ionizados; d-) um campo eletromagnético atrai somente os átomos ionizados (no caso o 235U) para coletores de material enriquecido. O isótopo 238U, cego aos lasers de corante, “passam direto” pelo campo eletromagnético e são coletados em coletores de rejeitos.

O MLIS (Molecular Laser Isotope Separation) utiliza a molécula de UF6 que, à temperaturas próximas da ambiente, existe na forma de vapor. Lasers no infravermelho podem ser sintonizados de forma que as moléculas contendo o isótopo 235U absorvam preferencialmente a luz do laser. A absorção de vários fótons pelas moléculas pode excitá-las a tal ponto que esta se quebra em F + UF5. Na mesma temperatura de trabalho, o UF5 é sólido e pode ser facilmente separado do vapor remanescente. Como a excitação e a consequente quebra das moléculas é seletiva, o UF5 terá uma fração maior do isótopo 235U que o vapor de partida.

O CRISLA (Condensation Repression by Selective Laser Activation) também utiliza UF6 e lasers no infravermelho. Se um vapor é forçado a passar por uma tubeira supersônica, o ângulo com que o vapor sai da tubeira depende da massa das partículas que compõe o vapor. Um jato de vapor de UF6 é forçado a passar em uma tubeira a velocidades supersônicas; devido a processos aerodinâmicos, a temperatura do vapor cai e este tende a se condensar em aglomerados, como gotículas de água em uma nuvem. A formação de aglomerados é evitada se as moléculas de UF6 forem excitadas pela absorção de luz de um laser. Assim, um laser sintonizado de maneira que somente as moléculas contendo o isótopo 235U sejam excitadas determina a formação de vapor com partículas com massas muito diferentes: uma fração formada por moléculas de UF6 e o restante formado por aglomerados de moléculas. Devido a diferença de massas, estes dois vapores terão ângulos diferentes ao emergirem da tubeira e podem ser separados por anteparos.

O método utilizado pelo consórcio entre GE, Hitachi e Cameco na planta de separação por laser sendo licenciada os E.U.A. não é divulgado, no entanto há evidências que se trate do CRISLA.


Quais as vantagens dessa técnica em relação às técnicas de ultracentrifugação e a de difusão gasosa?

Nicolau:
A principal vantagem apresentada pelos métodos por laser, quando comparados com a ultracentrifugação e a difusão gasosa, é a alta seletividade, que permite a separação nos graus de enriquecimento necessário em uma única passagem, não sendo portanto necessária a adoção de cascatas de separação. Também devido a alta seletividade, em princípio 100% do 235U pode ser retirado do material de entrada, gerando um rejeito somente com 238U. O mesmo não ocorre com as ultracentrífugas nem com a difusão gasosa, que geram um rejeito contendo cerca 0,25% de 235U. Em outras palavras, o enriquecimento por meio de ultracentrífugas e difusão gasosa deixam cerca de 1/3 do 235U sem ser aproveitado junto ao rejeito.
Em 1984 a URENCO (consórcio Alemão-Holandês-Britânico produtor de combustível nuclear) apresentou um estudo comparativo da viabilidade econômica do enriquecimento de urânio via AVLIS, MLIS e usando ultracentrífuga. Concluíram que o método de separação por laser é o de menor custo final na produção de combustível nuclear, além de apresentar o melhor rendimento energético.


E as desvantagens?

Nicolau: A principal desvantagem dos métodos a laser é o denso aporte tecnológico. Existem barreiras tecnológicas que precisam ainda ser vencidas para a viabilização dos métodos em larga escala.


No Brasil, o senhor gerencia um projeto de enriquecimento de urânio via lasers que começou a ser desenvolvido na década de 1970. Quanto já foi gasto neste projeto?

Nicolau: Somente uma correção: o projeto sob minha gerência, baseado no método AVLIS, descrito acima, foi paralisado em março deste ano. O desenvolvimento deste projeto se confunde com o próprio desenvolvimento do IEAv. Muito dos recursos empregados no desenvolvimento do projeto foi compartilhado (tecnologia compartilhada) com outros projetos e atividades de pesquisa. No entanto, uma estimativa razoável seria que foi empregado neste projeto da ordem de 6 milhões de reais desde 1982.


Por que o projeto foi paralisado e há previsão de retomada dele?

Nicolau: O projeto foi paralisado principalmente por falta de recursos humanos, mas também devido à falta de regularidade na aplicação de recursos financeiros e às a amarras burocráticas na aplicação dos poucos recursos financeiros aplicados. Que seja do meu conhecimento, não há previsão de retomada do projeto no âmbito do IEAv.


E quais os principais resultados obtidos?

Nicolau: Os resultados quantitativos são classificados e não tenho autorização para divulgá-los, no entanto, de forma sintética, seguem os principais resultados obtidos no âmbito do projeto:
- desenvolvimento de lasers de corante para a excitação seletiva de urânio;
- espectroscopia para identificação dos comprimentos de onda necessários para a excitação seletiva do isótopo 235U;
- obtenção de altíssima seletividade de excitação do 235U;
- coleta de material enriquecido a laser, com enriquecimento significativamente maiores que o obtido por uma única etapa de ultracentrífugação ou por difusão gasosa, em quantidades de laboratório.


Em 2004 já havia previsão para a construção de uma usina piloto. Qual a situação disso?

Nicolau: A usina piloto é cogitada desde as origens do projeto; em 2004 ocorreu uma das muitas discussões sobre o nível de conhecimento necessário para o projeto e construção de uma usina piloto de demonstração em escala de produção de combustível. Como já mencionado o projeto foi paralisado.


Quais os principais obstáculos a serem vencidos para que esta técnica alcance escala industrial?

Nicolau: Observar que me refiro somente à técnica desenvolvida no IEAv, que não é utilizada na usina da GE. Uma usina em escala industrial foi implementada, testada e transferida para a USEC nos E.U.A., utilizando o método AVLIS de separação. Naquela iniciativa, o principal obstáculo encontrado foi o manuseio de grandes quantidades de urânio líquido e na forma de vapor, necessários para o método.
No IEAv, o principal obstáculo é bem mais básico, é falta de continuidade de aporte de recursos e de apoio, e a desagregação da equipe capacitada para o desenvolvimento do projeto, que se encontra quase toda em vias de se aposentar.


No Brasil, há interesse nisso dado o avanço da técnica de ultracentrifugação da Marinha e sua instalação na Fábrica de Combustível Nuclear da INB?

Nicolau: A técnica de enriquecimento de urânio por ultracentrifugação é para agora: foi desenvolvida em todas suas etapas e atende de maneira adequada as necessidades de produção de combustível nuclear do País. No entanto, o enriquecimento por ultracentrifugação não aproveita todo o material físsil encontrado no urânio natural. Como já mencionado, cerca de 1/3 do 235U permanece no material rejeitado pelas ultracentrífugas, ou seja, 1/3 do seu potencial energético, não é aproveitado. Este rejeito das ultracentrífugas ainda pode ser separado usando lasers, recolhendo virtualmente todo o 235U disponível. Assim, as técnicas usando lasers são para o futuro. Acrescente-se ainda a conclusão do estudo da URENCO que as técnicas por laser eram as que apresentavam o menor custo final e o melhor aproveitamento energético.


O enriquecimento de urânio pode gerar preocupações sobre a produção de material para bombas atômicas. Do ponto de vista técnico, o enriquecimento via lasers permite alcançar altos enriquecimentos de forma mais fácil que as técnicas de ultracentrifugação e a difusão gasosa?

Nicolau: Do ponto de vista técnico, as técnicas de enriquecimento por laser permitem a obtenção de altos enriquecimentos em uma única etapa, no entanto, a ultracentrifugação é a de mais fácil implementação, principalmente em atividades não declaradas, uma vez que utiliza tecnologias de mais fácil acesso. Vide o caso da Coreia do Norte.


Para saber mais:

Avanço no uso de laser para enriquecimento do urânio pode proliferar bombas (tradução do artigo do The New York Times)
Projeto Javari-1: Separação Isotópica via Lasers e Vapor Atômico - IEAv/CTA
Brasil desenvolve técnica avançada de enriquecimento de urânio - Com Ciência, 2004
Enriquecimento de Urânio no Brasil - Desenvolvimento da tecnologia por ultracentrifugação - Economia & Energia, 2006.


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