Onde houver um acidente envolvendo material radioativo, pode apostar que lá estará Robert Peter Gale. O oncologista e hematologista americano de 66 anos é uma das maiores autoridades em tratamento de vítimas da radiação. Em 1986, ele se ofereceu ao governo da então União Soviética para ajudar os médicos locais no desastre de Chernobyl. Um ano depois, veio ao Brasil para fazer parte da equipe responsável por monitorar os contaminados pelo césio-137 em Goiânia – o material vazou de um aparelho de radioterapia abandonado e confundido como sucata por catadores de lixo.
ÉPOCA – O senhor visitou Fukushima logo após o terremoto e esteve lá há pouco mais de um mês. O que mudou em um ano?
Robert Gale – Só para deixar claro, estive lá mais ou menos durante seis meses no ano passado, não continuamente, entre cinco e dez vezes. Fui e voltei muito frequentemente, então para mim não se trata de um cenário preto no branco, sem nuances. Vi a situação evoluir. No início, meu foco era descobrir se haveria vítimas agudas da radiação. Queria descobrir se havia indivíduos que receberam doses extremamente altas de radiação e precisariam de intervenção médica imediata. No início, esse era o ponto a que todos estavam atentos. Tínhamos os recursos e as pessoas necessárias para responder a essa demanda. Felizmente, ninguém foi submetido a essa dose alta de radiação. Tivemos apenas dois operários da usina que sofreram contaminação por pisar em água radioativa. Mas ninguém chegou a adquirir uma alta dose no corpo inteiro, como ocorreu em diversos outros acidentes, incluindo Chernobyl e Goiânia. O segundo foco foi a evacuação: tirar as pessoas de lá. Agora, em uma terceira fase, estamos tratando de quando as pessoas poderão retornar, quando será seguro e se haverá infraestrutura disponível para permitir o retorno de ao menos parte das pessoas evacuadas. E, claro, continuamos atentos à exposição dos operários de Fukushima.
ÉPOCA – Fukushima ainda é inseguro para a vida humana?
Gale – Primeiro, algum imprevisto sempre pode ocorrer com os trabalhadores. Seria um acidente extraordinário alguém se expor a uma alta dose de radiação. Mas pode acontecer. Por isso, temos medidas razoáveis para tentar proteger esses operários. Quanto à segurança das áreas ao redor de Fukushima: a maioria dos locais evacuados é potencialmente segura, do ponto de vista da radiação. Mas não há infraestrutura, não há comércio, hospitais, escolas, foi tudo abandonado. Há muita discriminação contra a produção de alimentos das áreas próximas a Fukushima. Então, as pessoas não podem retornar até o governo decidir o que fazer ali. Não é prático trazê-los de volta até esses problemas serem solucionados. Para isso ocorrer, é necessária uma decisão do governo de restabelecer essas estruturas importantes antes de deixarmos as pessoas voltarem, mesmo que a radiação que ameaça essas áreas seja muito modesta.
ÉPOCA – Já é possível ter uma dimensão do acidente nuclear?
Gale – Se usarmos Chernobyl como parâmetro, a primeira questão é a incidência de câncer. Em Chernobyl, foram computados entre 6 mil e 7 mil casos de câncer de tireóide em crianças. Os casos apareceram entre dez e 15 anos após o acidente. Para os outros tipos de câncer e leucemia, não há evidência convincente de que os números aumentaram. Pode ter ocorrido, é claro, mas o número é tão baixo que não conseguimos detectar. Isso não significa que não tenha ocorrido ou que não ocorrerá, pois cânceres relacionados à explosão da bomba atômica de Hiroshima e Nagasaki foram aumentar ou aparecer 50 anos depois. Alguém poderia argumentar que só se passaram 25 anos de Chernobyl, então é muito cedo; nós ainda não vimos, mas veremos. Em todo caso, dadas as proporções, com exceção dos casos de câncer de tireoide, os números de Chernobyl não são tão impressionantes. No caso de Fukushima, a liberação de radiação foi dez vezes menor. E o número de pessoas expostas foi centenas de vezes menor. Além disso, as causas dos cânceres de tireoide em Chernobyl, entre elas a ingestão de leite contaminado, não ocorreram em Fukushima. Então, eu diria que as consequências a longo prazo em Fukushima serão muito modestas. Claro que há desdobramentos graves, como o deslocamento de milhares de pessoas, a privação de sua rotina, além das dificuldades financeiras. Estritamente do ponto de vista da saúde, é muito improvável que haja um saldo grave em Fukushima.
ÉPOCA – O senhor costuma dizer que há uma reação exagerada a acidentes nucleares. Não é melhor pecar pelo excesso de zelo?
Gale – É preciso achar um equilíbrio. Vou dar um exemplo: todos os operários com quem conversei em Fukushima me disseram que estão fumando substancialmente mais por estarem preocupados com a radiação. Alguns começaram a fumar ou beber. Fazem isso para tentar relaxar. No dia a dia, o risco causado à saúde pelo fumo é centenas de vezes superior ao causado pela radiação. Então, exagerar o risco da radiação às vezes leva a comportamentos que, na verdade, causam dano às pessoas. Se evacuarmos 1 milhão de pessoas, teremos acidentes e mortes nas estradas e coisas desse tipo. Não temos de dizer que os riscos não existem. Mas temos de entender o risco num contexto de outros riscos existentes para essas pessoas. Todo ano, nos Estados Unidos, temos perto de 6 mil mortes causadas por distração de motoristas no trânsito. E não estamos proibindo carros, porque entendemos o risco de dirigir um carro. É a mesma coisa. Claro que existem riscos, mas temos de colocá-los em contexto.
ÉPOCA – O senhor citou o exemplo dos operários de Fukushima. Depois do acidente de Chernobyl, houve casos de aborto forçado até na Polônia, a milhares de quilômetros, por temor de que os bebês nascessem contaminados. Por que há tanto medo da radiação?
Gale – Isso é terrível, porque sabemos, a partir da experiência das bombas atômicas sobre o Japão, que danos ao feto só ocorreram em casos de exposição a doses extremamente altas de radiação, uma dose a que ninguém teria sido exposto em Chernobyl e a que certamente ninguém terá sido em Fukushima. O aconselhamento ao aborto foi feito sem nenhuma base científica. Sobre o medo, acredito que tenha algo a ver com o fato de a maioria dos riscos potenciais para nós ser facilmente percebida. Fogo, altura, furacões. Nós podemos perceber essas coisas. Mas não a radiação. Se eu submeter você a uma dose de radiação 200 vezes superior à normal, você não sentirá nada. Não há percepção do risco.
Isso angustia as pessoas. Agora, se eu pedir uma tomografia para examinar seu abdome, você provavelmente não recusará. Mas a dose de radiação que você receberá será muito maior do que qualquer um recebeu de Fukushima.
ÉPOCA – O senhor tem aconselhado o governo japonês sobre como lidar com o acidente. As medidas adotadas foram adequadas?
Gale – Teve um lado bom e um ruim. Algumas coisas foram muito bem feitas, outras nem tanto. A evacuação foi muito eficiente, e a decisão do tamanho da área de isolamento (atualmente um raio de 20 quilômetros em torno da usina) também foi uma boa decisão. Mas houve muita confusão na divulgação de informações sobre contaminação de água e comida. Muitos dados, que depois se provaram incorretos, foram divulgados. Não estava claro quem estava no comando. Queremos manter as pessoas informadas, mas temos de dar informações que sejam úteis e não as deixem mais confusas. Quando você divulga três vezes por dia quantos becqueréis (unidade de medida de radiação) por litro há na água, é muita informação, e as pessoas não usam isso.
ÉPOCA – Então é melhor não divulgar?
Gale – Não é melhor não divulgar, mas a informação tem de ser contextualizada, colocada em termos nos quais as pessoas vão entender. Se eu te falar que um copo d’água tem 500 becqueréis de césio por litro, você não sabe o que fazer com isso e a situação parece ruim. Então eu explico que você teria de beber cerca de seis litros dessa água todos os dias, por quatro meses, para adquirir a mesma radiação de alguém como uma aeromoça que faz o voo de São Paulo para Nova York durante um ano todo. Quando a informação é colocada dessa maneira, você pensa: ok, eu não gostaria de beber essa água por quatro meses, mas se eu beber um copo, não vou cair morto. Portanto, é preciso traduzir essa linguagem de dados que ninguém entende, mas as agências regulatórias e os governos não fazem isso. Eles não explicam qual seria o risco, apenas te dão um número e dizem qual é o limite. Mas isso não é o que você quer saber. Se eu disser que o limite é 500 becqueréis por litro e que uma coisa tem 660, você vai presumir que é ruim. E quando eu disser que outra coisa tem 400, você vai achar que está tudo bem. Mas não é isso que você quer saber. Você quer saber qual o risco pra você. E é claro que, se você beber aquele copo d’água, nada vai acontecer com você. Mas, se você beber essa água pro resto da sua vida, alguma coisa pode acontecer com você.
ÉPOCA – É seguro beber água ou comer vegetais de Fukushima?
Gale – Claro. Toda comida tem algum tipo de radiação. Estamos comendo alimentos radioativos e bebendo água radioativa o tempo todo. A discussão na verdade é sobre a quantidade (de radiação). Não há nenhum tipo de água radioativa quevocê possa ter acesso, como cidadão comum, que tenha uma quantidade que cause dano. Pode tomar um copo, ou dez, ou até 100 e não vai causar dano. É impossível. Mas, talvez bebendo a vida inteira, ela pode ser danosa.
ÉPOCA - A população japonesa é mais consciente dos riscos da radiação?
Gale – Sim, as pessoas lá estão muito atentas. Elas vão aos supermercados com medidores de radiação e coisas assim. Mas existe algo que acontece no Japão que é um pouco diferente dos outros lugares. Se você pensar em comida japonesa, o conceito de pureza dos alimentos é fundamental. Isso não é verdade se você pensar na culinária brasileira ou americana, mas essa questão de pureza no sabor e pureza nesses pequenos pratos sem nenhum molho é muito importante. Isso faz com que a ideia de radiação em sua comida ou água seja muito mais problemática em suas mentes do que seria em outros locais. É um problema muito mais sensível no Japão.
ÉPOCA – O acidente com o césio-137 em Goiânia, que deixou quatro mortos e ao menos 250 pessoas contaminadas naquela época, completará 25 anos em setembro. O senhor sabe como estão as pessoas que passaram pela sua avaliação?
Gale – Não, não tive um acompanhamento de longo prazo dessas pessoas. Quando falamos de césio, dizemos que sua meia-vida (tempo necessário para que se reduza à metade a quantidade de átomos radioativos em um certo reagente) é de cerca de 30 anos. Isso implica que o césio estará presente por um bom tempo. Essa seria sua meia-vida física: se você colocar césio num tubo de ensaio ou num copo em cima da sua mesa, ele será perigoso por 300 anos, porque normalmente uma substância segue ativa por dez meias-vidas. Mas, quando o césio entra em seu corpo, o corpo o excreta em cerca de 70 dias. Então, se considerarmos essa ideia de dez meias-vidas, daria 700 dias, ou quase dois anos. Como o acidente em Goiânia foi em 1987, as pessoas contaminadas por césio já estariam livres da substância em 1989. Elas não ficam contaminadas para sempre.
ÉPOCA – Elas ainda correm algum risco de terem câncer?
Gale – Elas estão sob risco dependendo da dose de césio que ingeriram ou com que entraram em contato entre 1987 e 1989. Então, dependendo da dose, ainda é possível que ocorra algo. Mas elas não estão mais expostas ao césio.
ÉPOCA – O senhor retornou a Goiânia depois do acidente?
Gale - Não, não voltei. Eu voltei ao Brasil algumas vezes, mas não recentemente. Eu não sei se alguém se tornou responsável pelo acompanhamento dessas pessoas. Deveria ser feito, é claro, e é uma tarefa pequena. No caso de Chernobyl, nós tivemos de acompanhar meio milhão de pessoas pelo resto da vida delas. No caso das bombas atômicas, são mais de 100 mil pessoas. Então, acompanhar algo como 250 pessoas em Goiânia não é um grande desafio. Nós sabemos quem eles são, então é possível fazê-lo, mesmo que se comece agora.
ÉPOCA – O senhor se expõe constantemente à radiação quando visita regiões atingidas por um acidente nuclear. Não tem medo?
Gale – Tenho um bom seguro de vida, então minha mulher me encoraja bastante a ir a esses lugares (risos). Piadas à parte, os médicos estão expostos a riscos o tempo todo. E temos uma fantasia de que somos invulneráveis. Já que tratamos de pessoas com câncer e pacientes morrem ao nosso redor o tempo todo, temos essa ideia de que isso não vai acontecer conosco. Tento não me preocupar muito com isso. Na verdade, quando minha mulher dirige a 160 quilômetros por hora numa rodovia deserta em Montana (Estado americano), uma coisa que ela gosta de fazer, aí sim eu me preocupo. Quando existe uma política implementada, como o uso de roupas de proteção em usinas, faço o que todos ali fazem, claro, porque não quero ser exceção à regra ou ser visto como um privilegiado. Mas não, não sei qual a dose que recebi em um determinado acidente ou outro.
ÉPOCA - Em Chernobyl, o senhor deixou de usar a roupa de proteção porque ela o fazia caminhar mais devagar, ficar mais tempo na área contaminada e, supostamente, estar mais exposto à radiação. E preferiu entrar com roupas comuns. Isso fazia sentido?
Gale – Muito interessante você falar disso. No acidente de Goiânia, nós lidamos com uma situação muito excepcional, na qual os próprios pacientes eram radioativos. Normalmente, nós tratamos pessoas que foram expostas à radiação, mas não são radioativas. Mas em Goiânia eram pessoas radioativas, porque tinham incorporado o césio (uma menina de seis anos ingeriu o pó de césio e morreu pouco mais de um mês depois). Então, eram capazes de submeter os médicos que as tratavam a doses de radiação. É uma situação muito pouco usual. A princípio, quando chegamos para atender esses pacientes, achamos que usaríamos roupas de proteção. Mas rapidamente ficou claro que isso não funcionaria. Quando você está tentando tratar uma criança, vestindo um escudo vermelho, não conseguirá atendê-la de maneira adequada. Atrás desse escudo, você não consegue examinar o paciente direito. Então, nós a principio tínhamos essa ideia, mas depois de um dia ficou muito claro que não funcionaria. Aí nós simplesmente mandamos a proteção para o inferno. É claro que não expomos nenhuma médica, ou médica grávida, a esse trabalho. Mas nós decidimos que íamos simplesmente cuidar dos pacientes, independentemente da radiação.
ÉPOCA – Há muitos estudos questionando o risco de contrair câncer por conta da radiação vinda de celulares e outros aparelhos. O que há de concreto nisso?
Gale – Acho que a maioria de nós não percebe o quão frequentemente esses aparelhos tecnológicos, pelos quais nós estamos cercados o tempo todo, usam radiação. Por exemplo, um detector de fumaça. Se você tem um em casa, você tem um aparelho radioativo, ele usa radiação. Os sinais luminosos de “saída” também são radioativos. Usam trítio (radioisótopo do hidrogênio), por isso são brilhantes e luminosos. Então, existem centenas de aparelhos radioativos em nosso dia-a-dia e isso não é novo. Nós sabemos que os detectores de fumaça salvam muito mais vidas em comparação ao prejuízo causado pela radiação que eles liberam. No caso de celulares e similares, a evidência disponível não é convincente. Não existe nenhum mecanismo biológico ao qual eles poderiam causar dano. Em minha opinião, existe um exagero. Sem dúvida nenhuma, muito mais pessoas vão morrer atropeladas por alguém distraído falando no celular do que vão morrer indivíduos pela radiação do aparelho.
ÉPOCA - Então não estamos mais vulneráveis ao câncer?
Gale – Bom, os índices de câncer estão aumentando. Parte disso é porque nós resolvemos outros problemas, como doenças relacionadas à idade. As pessoas estão vivendo cada vez mais, então nós podemos esperar mais casos de câncer. Nós sabemos que muitas vezes nós causamos o câncer. É o caso do fumo. Se de fato estivermos comprometidos em acabar com essa doença, então todo governo deveria banir os cigarros. Algo como 10% dos cânceres estão relacionados ao cigarro. Há também outras substâncias químicas, como benzeno, que causam câncer, e você deve controlá-las. Claramente, existem diversas intervenções preventivas que são muito mais importantes do que pensar nos celulares.
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